Ex-estudantes da UFRGS dão testemunho sobre a ditadura na universidade
A repressão marcou a vida dos estudantes para sempre. Muitos foram presos, alguns passaram para clandestinidade e outros seguiram para o exílio.
Três ex-estudantes da UFRGS- Universidade Federal do Rio Grande do Sul participaram de uma audiência pública onde deram seu testemunho sobre os anos de chumbo da ditadura no ambiente acadêmico e como o golpe militar de 1964 afetou suas vidas. O evento foi realizado na sexta-feira (28 de novembro) na Sala II do Salão de Atos do campus central, mesma data do aniversário de 91 anos da universidade, e foi organizado pela Comissão Memória e Verdade (CMV) Enrique Serra Padrós da UFRGS.
Os ex-universitários são Dilza de Santi, João Ernesto Maraschin e Henrique Finco. Santi ingressou na universidade em 1966, no curso de Filosofia, foi vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e, em 1968, foi punida pela UFRGS e obrigada a abandonar o curso, quando passou a viver na clandestinidade em São Paulo. Maraschin cursava Direito e Sociologia em 1968. Em 1970, foi presidente do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt e, em 1971, foi eleito presidente do DCE. No ano seguinte, foi expulso com base no Decreto 477, quando passou para a clandestinidade e a experiência do exílio. O terceiro ex-aluno, Henrique Finco, era do curso de Engenharia em 1974, participou do III Encontro Nacional de Estudantes de Belo Horizonte, em 1977. Perseguido pela repressão, foi obrigado a abandonar a faculdade.
A audiência pública, a primeira realizada pela Comissão, faz parte dos trabalhos de apuração sobre as perseguições e a repressão ocorridas no ambiente universitário durante a ditadura vivida pelo Brasil a partir do golpe militar em 1964. O evento contou com a presença do vice-reitor da UFRGS, professor Pedro Costa, que deu as boas-vindas aos participantes do evento e destacou a importância de resgatar a memória e defender os espaços democráticos para que atos golpistas não se repitam. A professora Roberta Baggio, presidenta da Comissão, salientou o trabalho das integrantes da CMV, todas mulheres, além dos bolsistas e de voluntários.
Para Baggio, “estamos diante de um encontro geracional, ex-alunos entregando um legado para os alunos atuais, confirmando o compromisso histórico da universidade pública com a democracia”. Ela informou que a Comissão já realizou 46 reuniões, construiu um site, tem conteúdo no Instagram e diversas pesquisas, que estão sendo digitalizadas e serão disponibilizadas ao público. Tanto no site como no Instagram, há um QR code que leva a um formulário para quem desejar contribuir com informações sobre o período da ditadura na UFRGS.
Depoimentos
Dilza de Santi, natural de Uruguaiana, estudou em colégio religioso na cidade, fez o curso de Magistério e de Contabilidade e, com o auxílio das freiras, aprendeu o método Paulo Freire de alfabetização de adultos. “Devo minha formação humanista à educação que recebi e à participação ativa na Juventude Católica”, conta. Liderança secundarista e ativista política, Dilza passou a dar aulas de alfabetização a adultos que viviam nas barrancas do rio Uruguai, em 1963. Não demorou muito tempo para que esse ato de inclusão social fosse considerado subversivo e ela foi chamada para prestar depoimento, que acabou sendo lido na rádio da cidade como prova de sua transformação em uma perigosa comunista.
A jovem professora e sua família não tinham mais ambiente para permanecer em Uruguaiana, vieram para Porto Alegre, onde Dilza conseguiu emprego e ingressou na faculdade de Filosofia, onde logo se tornou uma forte liderança e referência política, sendo perseguida pelos agentes da ditadura. Em 1968, Dilza mudou para São Paulo, adotou outro nome, foi morar no ABC, clandestina, mas precisou sair da região e seguiu para a capital do estado.
Estava sem nada, nem documentos tinha. Com o auxílio de alguns contatos, conseguiu trabalho em um instituto de pesquisa que não exigia documentos para contratar e pagava em dinheiro. O instituto era do empresário Sérgio Motta, o Serjão, que na democratização do Brasil viria a ser ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique Cardoso. Foi nesse instituto que Dilza conheceu outro estudante perseguido pela ditadura, Mário, que cursava Sociologia na USP, com quem casou, e estão juntos até hoje. Anos depois, Dilza conseguiu concluir o curso de Filosofia na USP.
“Muito emocionante estar aqui”, disse Dilza no começo de seu testemunho na audiência pública. “Voltei à UFRGS em apenas duas oportunidades, na formatura de meus dois filhos, em Jornalismo e em Arquitetura, mas ainda não tinha encontrado colegas da minha época”. O marido, Mário, e o filho, jornalista, Alexandre, acompanharam Dilza no depoimento.
João Ernesto Maraschin iniciou seu testemunho revelando que “o que nos movia naquela época era a luta por liberdade, nós fomos um incômodo para a ditadura porque não abandonamos a utopia”. Maraschin ingressou nos cursos de Direito e de Sociologia em 1968, tendo participado ativamente do movimento estudantil e das lutas por mais vagas, mais verbas para a educação e contra os acordos MEC/USAID. Comovido com o evento na UFRGS, Maraschin avalia que “as emoções lubrificam nossas histórias”.
Ele foi vice-presidente do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, assumindo a presidência em 1970. Em 1971, foi eleito presidente do DCE e, no ano seguinte, foi expulso com base no Decreto 477. Passou pela experiência da clandestinidade e do exílio. Do Brasil, Maraschin foi para o Chile, mas o golpe militar contra o governo de Salvador Allende, resultou em sua prisão no Estádio Nacional, de onde milhares de pessoas foram levadas para a morte no deserto do Atacama e no mar, sendo jogadas de avião. Quando foi liberado, seguiu para a Suíça, voltou ao Brasil em 1979 com o processo de anistia. Não conseguiu concluir a faculdade. Sua vida mudou para sempre.
Henrique Finco, atualmente professor titular de cinema na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), era estudante de Engenharia em 1974. Atuou no movimento estudantil da UFRGS em episódios como as eleições diretas para o DCE em 1975, o III Encontro Nacional de Estudantes de Belo Horizonte em 1977 e a resistência na Praça Argentina, em 1980, contra a visita do ditador Jorge Videla, dentre outros episódios. Em 1985, concluiu o curso de Jornalismo na UFRGS. Finco é cofundador do Curso de Cinema da UFSC.
Finco era bolsista da universidade, recebia um auxílio em dinheiro e morava na Casa do Estudante (CEU). Por ter participado de um congresso de estudantes em Belo Horizonte (MG), foi punido com a perda da bolsa e expulso da CEU e acabou fichado no DOPS- Departamento de Ordem Política e Social. Sem ter como se manter, abandonou o curso e passou a viver com a ajuda de amigos. Muitos anos depois, ingressou no curso de Jornalismo da UFRGS.
Na plateia da audiência pública, muitos ex-alunos da universidade, alunos atuais, o ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont, também egresso da UFRGS, Camilo Celiberti, que aos 7 anos de idade foi sequestrado em Porto Alegre junto com a mãe, Lilian, a irmã, Francesca, com 3 anos de idade, e o militante Universindo Dias, em 1978, na Operação Condor. Também presente a audiência, José Vieira Loguércio, preso no Congresso da UNE- União Nacional de Estudantes em Ibiúna em 1968, entre outros tantos nomes que lutaram contra a ditadura e ajudaram a construir memórias coletivas.
Comissão da Memória e da Verdade
A Comissão da Memória e da Verdade “Enrique Serra Padrós” busca coletar e disponibilizar os registros sobre as violações de direitos humanos que aconteceram na UFRGS entre 1964 e 1988, período marcado pelo regime autoritário instaurado no Brasil, entre 1964 e 1985.
No período entre 1964 e 1969, a UFRGS teve dois processos de expurgo, nos quais foram expulsos inúmeros docentes, estudantes e técnicos, além da aposentadoria compulsória de vários profissionais. O trabalho envolverá um canal de escuta, arrecadação de documentos da época, testemunhos, entre outros.
O nome da Comissão é uma homenagem ao professor Enrique Serra Padrós, que atuou no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFRGS. Padrós, que morreu em 2021, dedicou sua trajetória acadêmica à pesquisa sobre regimes autoritários na América Latina.
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