domingo, 14 de dezembro de 2025

 Congresso Nacional de Jornalistas é marco histórico


Evento define agenda de lutas e declara enfrentamento à censura



Jornalistas de todo o Brasil participaram do 40º Congresso Nacional da categoria, encerrado na sexta-feira  (12), em Brasília. Este foi o primeiro congresso presencial após a pandemia de Covid e do período de governo do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, caracterizado por ataques à imprensa e estímulo à violência contra jornalistas.


“A gente viveu anos de muita hostilidade, desinformação e violência contra o nosso trabalho, então estar aqui agora, reunida com colegas do país inteiro, tem um significado enorme, ainda mais em uma semana na qual a extrema direita protagonizou mais um episódio de violência contra jornalistas e cerceamento do nosso trabalho dentro da Câmara dos Deputados. Os ataques não ficaram no passado e esse encontro mostra o quanto precisamos estar organizados e unidos”, afirmou a jornalista Sílvia Fernandes, que participou do evento junto com a colega Stela Pastore, ambas representando o Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul (SindjorRS), 


Ela destacou também a participação dos jornalistas que estiveram na audiência da Comissão de Direitos Humanos do Senado, conduzida pelo senador Paulo Paim (PT/RS), que mostrou como o discurso de ódio afeta a liberdade de imprensa e também como o assédio judicial é usado para calar jornalistas e veículos, principalmente os independentes, que fazem denúncias e jornalismo investigativo. A Fenaj- Federação Nacional dos Jornalistas apresentou o relatório anual que denuncia a violência contra jornalistas, produzido em conjunto com os sindicatos dos Estados. “Foi uma atividade que deu visibilidade aos graves problemas enfrentados pela categoria e mostrou a necessidade de pautar a formulação de políticas para esse enfrentamento”, salientou Fernandes.


Os jornalistas representantes de 22 unidades da Federação aprovaram propostas que definem as principais bandeiras de luta da categoria, algumas já incorporadas pela Fenaj e sindicatos, como a campanha salarial nacional, que unifica e fortalece os sindicatos nas negociações salariais, a PEC- Projeto de Emenda à Constituição do Diploma, pela volta da exigência do diploma para obtenção do registro profissional, a regulação das Big Tecs,como a Meta, por exemplo, que obrigue as plataformas a remunerar o uso do conteúdo jornalístico e também a defesa profissional contra a precarização decorrente da terceirização, que empurra jornalistas para o uso de CNPJ como vínculo de trabalho, desobrigando as empresas do cumprimento de benefícios legais.


Além dessas questões, o Congresso também discutiu sobre o uso da IA- Inteligência Artificial e os impactos que provoca na profissão. Uma das teses aprovadas definiu a necessidade de estabelecer princípios que orientem o uso da IA no trabalho jornalístico e que preservem os direitos dos profissionais. O Congresso ainda decidiu pela realização de seminário nacional para discutir a reformulação do Código de Ética dos Jornalistas, culminando com a realização de um congresso extraordinário de reformulação.


As representantes do Sindjors apresentaram duas teses e uma moção que foram aprovadas no Congresso. A moção é em apoio à TVE e à Rádio Cultura FM, que sofrem processo de desmonte desde 2016, e as teses são a que propõe a criação de um Coletivo Jurídico Nacional para fortalecer de forma estratégica a Fenaj, e a que exige a jornada legal de  cinco horas diárias para jornalistas no serviço público.


A jornalista Stela Pastore destaca que o ponto alto do Congresso foi o lançamento oficial da Campanha Salarial Nacional Unificada dos Jornalistas 2026. “A iniciativa visa unificar a luta dos sindicatos estaduais por reajustes dignos e pela manutenção de direitos. O debate denunciou a "pejotização" (contratação via Pessoa Jurídica) não como empreendedorismo, mas como uma armadilha e fraude trabalhista que retira direitos básicos, como férias e previdência, mantendo a subordinação do trabalhador. A mensagem foi clara: jornalista é trabalhador e exige respeito à CLT”.


Laura Santos Rocha, jornalista que preside o SindjorRS, disse que o Sindicato fez um esforço enorme para conseguir encaminhar as duas colegas jornalistas ao evento, “por entender a importância das entidades sindicais trabalharem de forma conjunta para tentar, no mínimo, diminuir os impactos que os desmontes trabalhistas estão causando na nossa categoria, tirando direitos de trabalhadoras e trabalhadores da comunicação. Pensar de forma ordenada ações futuras é sempre mais eficaz”.


Feito histórico


A coordenadora-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SindjorDF), Bibiana Garrido, destacou que o 40° Congresso Nacional é um feito histórico por reunir centenas de profissionais e estudantes em torno da discussão sobre o futuro da categoria. “Ganhou mais força, ainda que por um motivo infeliz, depois do episódio de censura e violência contra profissionais da imprensa ocorrido no Congresso Nacional, com o presidente da Casa, deputado Hugo Motta (Republicanos/PB), impedindo o acesso da imprensa ao plenário”, lembrou Garrido.


Ela afirmou que “casos como esse mostram que o momento é de união e de mobilização coletiva, porque não apenas sofremos violência física durante o exercício da profissão, como nós, jornalistas brasileiros, estamos seguidamente lidando com perdas de direitos. Desde a derrubada da obrigatoriedade do diploma e a contrarreforma trabalhista, a precarização, e a pejotização do trabalho das e dos jornalistas têm adoecido profissionais com baixos salários, acúmulo de função, contratos irregulares e exposição a violações diversas. Nós podemos reverter esse cenário e conquistar o respeito à nossa categoria, com condições dignas de trabalho, por meio da luta e engajamento da categoria com seus coletivos, sindicatos e demais entidades representativas”. 


Apoio institucional


O 40º Congresso Nacional dos Jornalistas contou com o patrocínio da Caixa Econômica Federal (CEF), Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Banco do Nordeste (BNB) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI), além do apoio da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), Associação dos Docentes da UnB (Adunb), Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), Sindicato dos Fazendários do Ceará (Sintaf-CE), Sindicato dos Bancários do DF e Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes).


Relatório da Fenaj 


O Relatório da Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ ), analisa o cenário de agressões, intimidações e censura contra os profissionais da imprensa no ano de 2024. Embora tenha ocorrido uma redução no número total de ataques a jornalistas, em comparação com os anos anteriores, o cenário ainda é alarmante e revela características preocupantes sobre a continuidade da violência contra os operários e operárias na notícia.


Em 2024, o número de ataques contra jornalistas teve redução, com o registro de 144 casos. Isso representa uma considerável queda, considerando o auge da violência nos anos do governo Bolsonaro (PL), que, desde o início de sua gestão, em 2019, tornou-se um dos principais agressores da imprensa, com discursos que incentivaram ataques físicos e verbais a jornalistas, em especial aqueles que confrontavam o discurso de negacionismo e desinformação.


Entre os tipos mais recorrentes de violência em 2024, o que se destacou foi o assédio judicial, uma das práticas mais graves contra o exercício profissional. O uso do sistema de justiça como instrumento de intimidação e censura foi a estratégia adotada por políticos, empresários e líderes religiosos autores dessa estratégia. Essa instrumentalização da lei visa silenciar profissionais da imprensa por meio de processos judiciais abusivos. Outro tipo de violência foram as agressões físicas e as ameaças presenciais. No total, foram contabilizados 30 casos de agressões físicas e 27 ameaças diretas. Cabe destacar que as agressões aumentam em ano eleitoral. A íntegra do relatório de 46 páginas está disponível no link 

https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2025/05/Relatorio-da-Violencia-2024.pdf









 Todos perdem com a ditadura


Fabico/UFRGS realiza evento com a participação da

presidenta da Comissão Memória e Verdade



O 6º Ciclo de Seminários Arquivos, Memória e Direitos Humanos encerrou na noite de quinta-feira (11), no Auditório II da Fabico- Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação com palestra da professora Roberta Baggio, presidenta da Comissão Memória e Verdade  (CMV) Enrique Serra Padrós da UFRGS- Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  O tema escolhido pelas alunas foi “A Memória da Ditadura pelos Olhos do Jornalismo”, com coordenação do professor do curso de Arquivologia Jorge Eduardo Enriquez Vivar.  


O encontro, que coincidiu com o aniversário de um ano da Comissão Memória e Verdade, abriu com um painel apresentado pelas alunas destacando o papel da imprensa na cobertura do período ditatorial, mesmo sob forte censura. No entanto, salientaram que os grandes veículos, inicialmente, apoiaram o golpe militar de 1964. Vários jornais e revistas foram retirados das gráficas e dos pontos de venda durante o período de arbítrio que se estendeu até 1985.


O auditório da Fabico, ocupado majoritariamente por jovens, foi descobrindo aos poucos que a ditadura perseguiu estudantes, funcionários e professores da universidade, culminando com a expulsão e a exoneração de dezenas de pessoas. E fora do espaço acadêmico, prendeu, torturou e assassinou centenas de pessoas que se opuseram à ditadura, como ocorreu com o jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 1975, em São Paulo, quando se apresentou para depor. Em honra a Herzog, 50 anos após seu assassinato, ex-estudantes da Fabico recolocaram, neste ao de 2025, a placa com seu nome no diretório acadêmico. Placa que havia sido retirada pela repressão em 1975.


Após a apresentação do painel das alunas,  a professora Roberta Baggio iniciou sua fala afirmando que “desvelar o papel da ditadura dentro da universidade é a missão da Comissão Memória e Verdade”. Ela explicou que a Comissão da UFRGS foi uma das últimas a ser criada no Brasil no âmbito do espaço acadêmico. Essa era uma recomendação do Ministério Público Federal e que vinha sendo protelada. Com a eleição e a posse da reitora Márcia Barbosa, em 27 de setembro de 2024, a Comissão pode, finalmente, ser criada e sua instalação aconteceu em dezembro. Agora, em 2025, a Comissão completou um ano. 


A professora Baggio elogiou a relevância do evento e a iniciativa das alunas e do professor Jorge Eduardo Enriquez Vivar “porque este é um encontro geracional. É importante que as novas gerações saibam que a ditadura foi nefasta para toda a Nação, não foi apenas no ambiente universitário. Todos perdem na ditadura”. Ela disse ainda que “temos uma dívida moral com as pessoas daquela época, que viveram no período da ditadura e a enfrentaram”.


A Comissão Memória e Verdade é formada por nove mulheres e tem duas grandes frentes de trabalho. Uma delas é organizar os arquivos documentais, realizando visitas a várias unidades da UFRGS. A CMV esteve na Fabico, onde o material está bem organizado. Outra frente, é a de testemunhos, que também conta com o apoio técnico da Fabico. Estão sendo gravados testemunhos com sobreviventes da ditadura, são ex-alunos, ex-servidores e ex-professores que foram perseguidos, expulsos ou banidos.


A presidenta da Comissão revelou que “gostaria que a UFRGS tivesse vários marcos para assinalar os espaços de resistência à ditadura, como é o monumento em homenagem ao professor Enrique Serra Padrós e que empresta seu nome à Comissão”. O monumento fica próximo à Reitoria. “E a placa com o nome do jornalista Vladimir Herzog, recolocada no diretório acadêmico da Fabico 50 anos após o assassino do jornalista por agentes da ditadura”, destacou Baggio. 






segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

 Ex-estudantes da UFRGS dão testemunho sobre a ditadura na universidade

A repressão marcou a vida dos estudantes para sempre. Muitos foram presos, alguns passaram para clandestinidade e outros seguiram para o exílio.

Três ex-estudantes da UFRGS- Universidade Federal do Rio Grande do Sul participaram de uma audiência pública onde deram seu testemunho sobre os anos de chumbo da ditadura no ambiente acadêmico e como o golpe militar de 1964 afetou suas vidas. O evento foi realizado na sexta-feira (28 de novembro) na Sala II do Salão de Atos do campus central, mesma data do aniversário de 91 anos da universidade, e foi organizado pela Comissão Memória e Verdade (CMV) Enrique Serra Padrós da UFRGS.

Os ex-universitários são Dilza de Santi, João Ernesto Maraschin e Henrique Finco. Santi ingressou na universidade em 1966, no curso de Filosofia, foi vice-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e, em 1968, foi punida pela UFRGS e obrigada a abandonar o curso, quando passou a viver na clandestinidade em São Paulo.  Maraschin cursava Direito e Sociologia em 1968. Em 1970, foi presidente do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt e, em 1971, foi eleito presidente do DCE. No ano seguinte, foi expulso com base no Decreto 477, quando passou para a clandestinidade e a experiência do exílio. O terceiro ex-aluno, Henrique Finco, era do curso de Engenharia em 1974, participou do III Encontro Nacional de Estudantes de Belo Horizonte, em 1977. Perseguido pela repressão, foi obrigado a abandonar a faculdade.

A audiência pública, a primeira realizada pela Comissão, faz parte dos trabalhos de apuração sobre as perseguições e a repressão ocorridas no ambiente universitário durante a ditadura vivida pelo Brasil a partir do golpe militar em 1964. O evento contou com a presença do vice-reitor da UFRGS, professor Pedro Costa, que deu as boas-vindas aos participantes do evento e destacou a importância de resgatar a memória e defender os espaços democráticos para que atos golpistas não se repitam. A professora Roberta Baggio, presidenta da Comissão, salientou o trabalho das integrantes da CMV, todas mulheres, além dos bolsistas e de voluntários. 

Para Baggio, “estamos diante de um encontro geracional, ex-alunos entregando um legado para os alunos atuais, confirmando o compromisso histórico da universidade pública com a democracia”. Ela informou que a Comissão já realizou 46 reuniões, construiu um site, tem conteúdo no Instagram e diversas pesquisas, que estão sendo digitalizadas e serão disponibilizadas ao público. Tanto no site como no Instagram, há um QR code que leva a um formulário para quem desejar contribuir com informações sobre o período da ditadura na UFRGS. 

Depoimentos

Dilza de Santi, natural de Uruguaiana, estudou em colégio religioso na cidade, fez o curso de Magistério e de Contabilidade e, com o auxílio das freiras, aprendeu o método Paulo Freire de alfabetização de adultos. “Devo minha formação humanista à educação que recebi e à participação ativa na Juventude Católica”, conta. Liderança secundarista e ativista política, Dilza passou a dar aulas de alfabetização a adultos que viviam nas barrancas do rio Uruguai, em 1963. Não demorou muito tempo para que esse ato de inclusão social fosse considerado subversivo e ela foi chamada para prestar depoimento, que acabou sendo lido na rádio da cidade como prova de sua transformação em uma perigosa comunista.

A jovem professora e sua família não tinham mais ambiente para permanecer em Uruguaiana, vieram para Porto Alegre, onde Dilza conseguiu emprego e ingressou na faculdade de Filosofia, onde logo se tornou uma forte liderança e referência política, sendo perseguida pelos agentes da ditadura. Em 1968, Dilza mudou para São Paulo, adotou outro nome, foi morar no ABC, clandestina, mas precisou sair da região e seguiu para a capital do estado.

Estava sem nada, nem documentos tinha. Com o auxílio de alguns contatos, conseguiu trabalho em um instituto de pesquisa que não exigia documentos para contratar e pagava em dinheiro. O instituto era do empresário Sérgio Motta, o Serjão, que na democratização do Brasil viria a ser ministro das Comunicações do governo Fernando Henrique Cardoso. Foi nesse instituto que Dilza conheceu outro estudante perseguido pela ditadura, Mário, que cursava Sociologia na USP, com quem casou, e estão juntos até hoje. Anos depois, Dilza conseguiu concluir o curso de Filosofia na USP.

“Muito emocionante estar aqui”, disse Dilza no começo de seu testemunho na audiência pública. “Voltei à UFRGS em apenas duas oportunidades, na formatura de meus dois filhos, em Jornalismo e em Arquitetura, mas ainda não tinha encontrado colegas da minha época”. O marido, Mário, e o filho, jornalista, Alexandre, acompanharam Dilza no depoimento.

João Ernesto Maraschin iniciou seu testemunho revelando que “o que nos movia naquela época era a luta por liberdade, nós fomos um incômodo para a ditadura porque não abandonamos a utopia”. Maraschin ingressou nos cursos de Direito e de Sociologia em 1968, tendo participado ativamente do movimento estudantil e das lutas por mais vagas, mais verbas para a educação e contra os acordos MEC/USAID. Comovido com o evento na UFRGS, Maraschin avalia que “as emoções lubrificam nossas histórias”.

Ele foi vice-presidente do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, assumindo a presidência em 1970. Em 1971, foi eleito presidente do DCE e, no ano seguinte, foi expulso com base no Decreto 477. Passou pela experiência da clandestinidade e do exílio. Do Brasil, Maraschin foi para o Chile, mas o golpe militar contra o governo de Salvador Allende, resultou em sua prisão no Estádio Nacional, de onde milhares de pessoas foram levadas para a morte no deserto do Atacama e no mar, sendo jogadas de avião. Quando foi liberado, seguiu para a Suíça, voltou ao Brasil em 1979 com o processo de anistia. Não conseguiu concluir a faculdade. Sua vida mudou para sempre.

Henrique Finco, atualmente professor titular de cinema na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), era estudante de Engenharia em 1974. Atuou no movimento estudantil da UFRGS em episódios como as eleições diretas para o DCE em 1975, o III Encontro Nacional de Estudantes de Belo Horizonte em 1977 e a resistência na Praça Argentina, em 1980, contra a visita do ditador Jorge Videla, dentre outros episódios. Em 1985, concluiu o curso de Jornalismo na UFRGS. Finco é cofundador do Curso de Cinema da UFSC.

Finco era bolsista da universidade, recebia um auxílio em dinheiro e morava na Casa do Estudante (CEU). Por ter participado de um congresso de estudantes em Belo Horizonte (MG), foi punido com a perda da bolsa e expulso da CEU e acabou fichado no DOPS- Departamento de Ordem Política e Social. Sem ter como se manter, abandonou o curso e passou a viver com a ajuda de amigos. Muitos anos depois, ingressou no curso de Jornalismo da UFRGS.

Na plateia da audiência pública, muitos ex-alunos da universidade, alunos atuais, o ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont, também egresso da UFRGS, Camilo Celiberti, que aos 7 anos de idade foi sequestrado em Porto Alegre junto com a mãe, Lilian, a irmã, Francesca, com 3 anos de idade, e o militante Universindo Dias, em 1978, na Operação Condor. Também presente a audiência, José Vieira Loguércio, preso no Congresso da UNE- União Nacional de Estudantes em Ibiúna em 1968, entre outros tantos nomes que lutaram contra a ditadura e ajudaram a construir memórias coletivas.


Comissão da Memória e da Verdade 

A Comissão da Memória e da Verdade “Enrique Serra Padrós” busca coletar e disponibilizar os registros sobre as violações de direitos humanos que aconteceram na UFRGS entre 1964 e 1988, período marcado pelo regime autoritário instaurado no Brasil, entre 1964 e 1985.

No período entre 1964 e 1969, a UFRGS teve dois processos de expurgo, nos quais foram expulsos inúmeros docentes, estudantes e técnicos, além da aposentadoria compulsória de vários profissionais. O trabalho envolverá um canal de escuta, arrecadação de documentos da época, testemunhos, entre outros.

O nome da Comissão é uma homenagem ao professor Enrique Serra Padrós, que atuou no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFRGS. Padrós, que morreu em 2021, dedicou sua trajetória acadêmica à pesquisa sobre regimes autoritários na América Latina.


 Com silêncio ou conversa, na canoa o consenso é o principal

Gera discussão e, às vezes, até briga, falar ou silenciar na canoa. Isso divide opiniões. Porque cada um tem a sua, mas o que deve prevalecer é o bom senso, além de um briefing antes de embarcar. Impor silêncio na marra e tentar sabotar o grupo exigindo do banco 3 um hip dito bem baixinho é autoritarismo. Longos papos na canoa, por sua vez, atrapalham a sincronia e podem tornar o hip e a voz do comandante inaudíveis. Por outro lado, vários comandos ditos de vários bancos, quando o comandante é o soberano na canoa, também não ajudam em nada e até podem causar acidentes. Aloha ouviu dois remadores e duas remadoras sobre o tema e espera contribuir para um entendimento harmônico, como deve ser em uma ohana.

O remador Marcelo Bosi, 50 anos, empresário, instrutor e atleta de canoagem, fundador da escola Alma Azul Academy, com base no Lago Norte, em Brasília, e no Rancho do Kite, na praia cearense do Preá, é um dos pioneiros da canoagem no Brasil e  tem uma história de sucesso no esporte, competindo há três décadas e conquistando títulos nacionais, sul-americanos e mundiais. Bosi esteve inúmeras vezes nas ilhas da Polinésia e já remou nas águas geladas da Antártica em uma V3. Ele é uma lenda viva.


Bosi conversou com a Aloha sobre silêncio e conversas na canoa. “Quando o treino busca melhor performance, a conversa precisa ser limitada, porque com muita conversa se perde o foco, a atenção e a sensibilidade do ritmo. Mas a comunicação é muito importante. O capitão tem de saber se comunicar de uma forma bem assertiva com a tripulação, se puxa mais, se alivia um pouco, pra não deixar a canoa tensa. Se o capitão falar de forma ríspida, enérgica, os remadores ficam estressados e não flui, perde-se muita energia”.


Em relação as remadas de lazer e passeios, Bosi destaca que “é preciso ser mais livre, as pessoas não estão ali com a intenção de performar, estão ali com a intenção de se divertir, de apreciar e, muitas vezes, é a primeira vez que alguém está remando e o novato quer se expressar, quer compartilhar. Nesse caso, quem está conduzindo a canoa precisa dar liberdade, evitar que o ambiente fique tenso, porque o propósito não é de competição. É preciso ter sensibilidade para conduzir a canoa e saber qual é o objetivo de cada remada. Eu mesmo não exijo nada em passeios, quando o objetivo não é performar, deixo as pessoas se divertirem, o ambiente tem de ser leve. O condutor deve ter sabedoria para perceber quando deve intervir, mas sempre com cuidado. Não pode ser autoritário”.


Marcelo Bosi começou a remar com oito anos de idade, no Lago Paranoá, em Brasília, quando seu pai mudou para uma casa no bairro Lago Norte e comprou um caiaque de turismo.  Quando completou o segundo grau, Bosi foi viver em Seattle, Washington, nos Estados Unidos. A região tem uma forte cultura de travessias em caiaque oceânico e Bosi começou a fazer expedições e viu pela primeira vez canoas havaianas, de uma comunidade tradicional, que vivia na região.


Ao retornar ao Brasil, ele continuou a fazer expedições pelo litoral e também em lagos, foi quando resolveu montar uma empresa de turismo de caiaque e foi incentivado a importar canoas havaianas para Brasília, em 2003, com o propósito de conectar as pessoas com uma atividade lúdica com a água e que é ancestral. Em 2020, Marcelo Bosi viajou 30 dias na Antártica, dos quais nove de canoa, uma V3, revivendo o mito polínésio do ano 650. Ele acompanhou a expedição do fotógrafo João Paulo Barbosa, que viajou à Antártica a bordo do veleiro Kotik.

Nos lagos Guaíba e Paranoá

Cada remada tem a sua alma”, define Henrique Ferreira, 40 anos, psicólogo, remador e lemista de canoa polinésia no Clube Kalola Va’a, nas margens do Lago Guaíba, em Porto Alegre. Mais que uma frase perfeita para uma  ohana, aqui há a noção exata de propósito. Quando a remada é de treino e de competição, a equipe precisa de total concentração, sincronia e silêncio para que as palavras de comando possam ser ouvidas por todos. Mas quando a remada é um passeio ou uma expedição o comportamento é outro porque existe um ambiente de socialização e a cronometragem é dispensada. 

Ferreira explica com a transparência que sua formação de psicólogo ensinou, “existe remada de passeio, leve, onde o objetivo é curtir o momento, conversar, dar risada, sentir o balanço da canoa e o clima do grupo. Claro que existe sincronia, respeito e noção de coletivo, mas sem aquela rigidez de treino. Não tem cronometragem, não tem pressão, não tem aquela exigência de silêncio absoluto. É outra energia”.

A conversa não é um problema. E o silêncio de monastério também não. “O problema existe quando alguém tenta impor o estilo errado para o tipo de remada que está acontecendo. Silêncio total em remada de passeio não faz sentido e conversa solta em treino técnico atrapalha. O que importa é alinhar antes, com respeito e maturidade. Quando isso acontece, a canoa navega redondo. Todo mundo se sente parte. E a água agradece”.

Quando a gente fala de treino e competição, o jogo muda, destaca Ferreira. A sinergia precisa ser combinada antes. Banco 1, 2 e 3 não podem estar remando focados enquanto 4, 5 e 6 estão batendo papo, por exemplo. Isso desorganiza, quebra o ritmo e mexe com o espírito da remada. Já competi em guarnições que treinavam em silêncio total, quase um ataque furtivo. Hip suave, pouca água batendo, remo sem barulho, todo mundo conectado no mesmo propósito. Era a cultura daquele time. Já estive em outras equipes onde o hip vinha forte, cheio de energia, e isso dava o tom da remada. E tudo funcionava porque havia um acordo. 


Aloha também conversou com duas remadoras sobre silêncio e conversas. Adriana Peppl, 57 anos, de Porto Alegre, é atleta de alta performance, Eni Braga, 51, bióloga, rema no Lago Paranoá, em Brasília. 


Adriana é uma atleta conhecida nas raias de provas. Segundo ela mesma, “carrego no remo meu caminho, minha identidade e minha força. Minha história na água começou cedo, do bodyboard à juventude, do SUP às primeiras remadas e,  em 2016, encontrei no va’a o lar onde corpo e espírito se alinham. Hoje vivo a canoa em todas as suas formas, OC1, OC2, V3 e OC6”. A atleta conta que “rema com o propósito de honrar a cultura, fortalecer a equipe e seguir aprendendo com o oceano, meu maior mestre”. 


Para Adriana, “o silêncio não é vazio, é o instante em que todos respiram no mesmo ritmo, quando o mar parece guiar a embarcação e cada remador sente o outro sem precisar de palavras. É ali que a canoa vira um só corpo, e o oceano, um mestre. Silenciar é honrar a ancestralidade, escutar o coração da água e deixar que ela conte o caminho”.


Ela conhece que também há o momento da palavra, “poucas, precisas e verdadeiras. Conversar antes de entrar no mar, alinhar intenções, partilhar o espírito da remada. Falar para orientar, para cuidar, para fortalecer o laço que une a equipe”. Adriana ainda destaca que “na canoa, cada grupo aprende que a travessia acontece nesse balanço: falar quando a alma precisa se alinhar, silenciar quando o mar pede escuta. A remada, então, torna-se um fluxo natural entre esses dois estados”.


As marés a levaram a conquistas que moldaram quem Adriana se tornou: pódios na cena gaúcha de SUP e de canoa polinésia, Black Medal no Aloha Spirit, e voltas a algumas ilhas que guardam histórias, como Ilha Grande, Ilhabela, Florianópolis e Porto Belo. Ela já cruzou 50 km de mar entre Itapema e Governador Celso Ramos, celebrou o título de Campeã Brasileira 2022 – Estreantes, garantiu a vaga na Seletiva Sprint 2023 em Brasília, e viveu a honra de competir no Mundial de Sprint 2024, em Hilo, no Havaí.


A remadora de Brasília, Eni Braga, conta que “curto muito o va’a justamente na sua vertente coletiva. Nesses três anos de esporte, apesar das recomendações de amigos e professores, ainda não tive vontade de remar canoa individual. Sintonizar com os companheiros para um deslocamento eficiente na água, enfrentando o desafio físico, ao mesmo tempo em que a natureza está ali também buscando a minha atenção junto com tudo que se passa na canoa, é o grande barato desse esporte. Me faz sentir muito viva e potente!”


A remadora, que compete na categoria master, salienta que “conexão e sintonia, fundamentais na prática desse e de outros esportes coletivos, envolvem comunicação e ela acaba acontecendo de diferentes formas. Conversa e silêncio, cada qual tem o seu momento e serventia. Aulas, passeios e até treinos, por que não? - indaga Eni, são momentos pra, junto com a técnica, também compartilhar emoções, percepções, experiências. Falar, ouvir, rir, brincar, pedir e dar atenção no momento certo faz parte e ajuda a criar a atmosfera de ohana tão própria desse esporte que, feliz e lindamente, tenho encontrado nas bases de Brasília”.


No entanto, Eni percebe que, por outro lado, “o silêncio é o que proporciona conexão nos momentos em que os corpos e mentes de todos estão focados no balanço, deslocamento e comandos. Nesse momento, qualquer som fora do combinado quebra tudo e dificulta que essa unidade tão forte e, ao mesmo tempo delicada, se estabeleça. Quem dirá gritos desesperados de vai, força ou comandos aleatórios vindos de todos ou qualquer um em momentos de cansaço ou dificuldade”. A remadora de Brasília já participou de competições e conquistou quatro medalhas. Eni revela que adora as provas, mas não faz delas o seu propósito na canoagem.


Comandos aleatórios, vindos de qualquer banco, confrontando quem está conduzindo a canoa, é mais grave do que uma conversinha a bordo e podem provocar acidentes. Imagine uma situação em que o condutor já calculou todo o trajeto mentalmnete e está conduzindo o leme com destreza, quando alguém da canoa resolve acelerar e dar ordens porque acha que a canoa vai bater na embarcação que está próxima. É aí que tem huli!


Cultura polinésia é oral

A navegação polinésia e o povoamento do Oceano Pacífico começaram há milhares de anos. Os habitantes das ilhas do Pacífico atravessavam vastas extensões oceânicas em canoas de casco duplo, conhecidas como catamarã, ou com estabilizadores, guiando-se exclusivamente pelo conhecimento das estrelas e pelas observações dos padrões do mar, dos ventos, das nuvens e das aves. Todo o conhecimento era passado de geração em geração em conversas e o ensinamento dos jovens era dentro da canoa, em longas conversas e troca de experiência com os mais velhos. 

A pesquisadora Kim Martins, da Nova Zelândia, com várias publicações sobre povos ancestrais, em especial os polinésios, destaca que os “habitantes das ilhas eram navegadores habilidosos que memorizavam instruções de navegação e transmitiam seus conhecimentos por meio de folclore, heróis culturais e histórias orais simples”. A escritora, além de ser bacharel em História e Direito, é mestra em Ciência do Caos e Complexidade.

O Oceano Pacífico cobre um terço da superfície da Terra, com 165,25 milhões de quilômetros quadrados e suas ilhas remotas foram as últimas a serem alcançadas por navegadores. Os ancestrais dos polinésios, o povo Lapita, partiram de Taiwan e colonizaram a Oceania Remota entre 1100 e 900 a.C. Os Lapita eram navegadores habilidosos que memorizavam instruções de navegação e transmitiam seus conhecimentos por meio de folclore, heróis culturais e histórias orais simples.

E ainda tem a área geográfica da Oceania Remota conhecida como triângulo polinésio, que abrange Aotearoa (Nova Zelândia), Havaí e Ilha de Páscoa, no Chile, e inclui mais de 1.000 ilhas. Entre algumas dessas ilhas, as distâncias superam 1.000 quilômetros. A navegação exigiu conhecimento e habilidades extraordinárias para deslocar em uma canoa de casco duplo ou com estabilizador por cinco a seis semanas em direção a um destino esperado. Sim, os navegadores não se deslocavam à deriva numa viagem só de ida, eles sabiam para onde iam e que poderiam voltar caso necessário.